A incorporação de tecnologias digitais na segurança pública insere-se em um movimento mais amplo de integração entre ciência, inovação e gestão estatal. No Brasil, marcos normativos como a Lei nº 10.973/2004, que promoveu a cooperação ciência–empresa, a Lei nº 13.243/2016, que instituiu o Novo Marco Legal da CT&I, e o Decreto nº 9.283/2018, que o regulamentou, criaram condições para que soluções baseadas em dados e inteligência artificial fossem aplicadas em serviços públicos.
No campo da criminologia situacional, tais inovações ganham relevo nas chamadas cidades inteligentes (smart cities), em que a gestão do espaço urbano e o uso de ferramentas preditivas buscam reduzir oportunidades para o crime, ampliar a vigilância natural e apoiar decisões rápidas das autoridades.
A criminologia situacional busca reduzir crimes pela gestão do ambiente e por medidas que dificultem a ação. Nas cidades inteligentes, esse paradigma materializa-se com iluminação adaptativa, câmeras, sensores e análise preditiva, ampliando vigilância natural e resposta estatal (Angelidou, 2015; Weiss et al., 2015). Na prática, essas tecnologias ampliam a presença do Estado nos espaços públicos e otimizam a resposta policial.
O recém-lançadoSmart Sancaintegra iluminação estratégica, videomonitoramento e algoritmos para orientar patrulhamento. O COR, no Rio, reúne 50 órgãos e monitora infraestrutura e ocorrências; em São Paulo oSmart Sampaconectou 31.323 câmeras, muitas com reconhecimento facial. Em seis meses, houve 1.153 foragidos capturados, além de crimes solucionados e desaparecidos localizados.
Em Recife a expansão do videomonitoramento elevou a sensação de segurança e a eficácia decisória (Magron, 2020). Esses resultados, contudo, precisam ser avaliados à luz dos direitos fundamentais: o aumento da vigilância não pode significar invasão da intimidade, monitoramento permanente de inocentes ou erosão do espaço público como lugar de liberdade. O desafio é equilibrar eficiência policial com garantias constitucionais.
Os achados sugerem efeito dissuasório. No policiamento preditivo, oCrimeRadaraplica aprendizado de máquina a dados criminais para preverhotspotse otimizar viaturas, com resultados preliminares associados à redução de crimes violentos, como homicídios (Igarapé Institute, 2019). Ao controlar meio físico e informacional por câmeras ebig data, políticas situacionais buscam antecipar-se aos delitos, reduzindo oportunidades e ampliando flagrantes.
Contudo, a adoção dessas soluções pede cautela: é preciso verificar se geram espaços mais seguros ou apenas controle territorial, sem impacto nos indicadores (Ferreira et al., 2023). Sem avaliação contínua, há o risco de os crimes apenas mudarem de lugar ou de ambiente. Por isso, é essencial avaliar com rigor se os sistemas de monitoramento realmente reduzem crimes ou apenas deslocam os problemas para outras áreas.
Com esse rigor, será possível aferir se o monitoramento se associa à redução da criminalidade ou se os efeitos se dissipam. Em suma, sob a ótica da criminologia situacional, cidades inteligentes são avanço na prevenção ambiental do delito, mas exigem escrutínio científico permanente para validar a eficácia e evitar que o fascínio tecnológico substitua políticas sociais e urbanísticas indispensáveis.
A evolução do governo digital revela um deslocamento do Estado como mero consumidor de tecnologia para um modelo de governança digital, no qual dados e interoperabilidade passam a estruturar decisões e processos institucionais. Fountain (2001) demonstra que a informatização não é neutra, pois reconfigura práticas burocráticas e relações de poder, enquanto Lips (2019) enfatiza a necessidade de transparência,accountabilitye participação cidadã como elementos centrais dessa transformação. Esse movimento abre caminho para o paradigma das cidades inteligentes, analisado criticamente por Kitchin (2014; 2015), que alerta para riscos de tecnodeterminismo e de dependência das administrações públicas em relação a corporações privadas que controlam as infraestruturas digitais.
Esses desafios não são apenas técnicos, mas sobretudo de política pública: quem decide quais dados podem ser coletados? Como assegurar que a gestão das cidades inteligentes respeite a presunção de inocência, a proteção de dados pessoais e o princípio da não discriminação? Tais questões colocam em jogo o núcleo dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
A Lei nº 13.675/2018 criou o Susp e autorizou convênios para compartilhar dados e tecnologia. A Lei nº 13.709/2018 (LGPD) limitou o uso de dados pessoais, com finalidade e minimização. Contudo, a ausência de regulação específica para inteligência artificial e reconhecimento facial cria um vácuo jurídico: sem parâmetros claros, amplia-se o risco de violar a LGPD, o ECA e os artigos 5º e 37 da Constituição, que asseguram intimidade, presunção de inocência e publicidade dos atos estatais.
Cresce a demanda poraccountability: sociedade civil e órgãos de controle exigem transparência e auditorias em sistemas de vigilância urbana. Bigo (2015) e Lyon (2007) veem essas tecnologias como vigilância massiva próxima ao panóptico foucaultiano, que disciplina condutas e dilui fronteiras. A Constituição de 1988 protege intimidade e presunção de inocência (artigo 5º, X), mas tais garantias podem ser tensionadas por sistemas que classificam pessoas como suspeitas.
Para Zuboff (2019), o “capitalismo de vigilância” converte dados em poder e lucro; a coleta massiva—como noSmart Sancaou no metrô—evidencia riscos. Transparência ativa, com relatórios algorítmicos e participação social, é crucial (Barocas & Selbst, 2016; Ylonen & Hedegard, 2020). Há boas práticas, como o CrimeRadar, do Instituto Igarapé, inspirado em padrões defairness, accountability and transparency(Igarapé Institute, 2019). Prevalece a opacidade algorítmica: gestores não compreendem resultados da IA (Eubanks, 2018).
Para fortalecer a governança democrática, são necessárias atualização normativa, capacitação e auditorias. O viés algorítmico é central: estudos mostram que reconhecimento facial e predição criminal podem reproduzir desigualdades (Barocas & Selbst, 2016; Benjamin, 2019). Estudos mostram que sistemas de reconhecimento facial erram mais com mulheres negras e já causaram falsos positivos no Brasil, reforçando riscos de discriminação (Buolamwini & Gebru, 2018; Benjamin, 2019).
Quando tais falhas atingem grupos vulneráveis, reforçam práticas discriminatórias e violam diretamente o princípio da igualdade, fundamento do Estado de Direito. A política pública de segurança digital precisa ser construída de modo inclusivo, evitando que as ferramentas ampliem desigualdades históricas. Para mitigar riscos, a Secretaria Nacional de Segurança Pública recomenda padronização, treinamento e monitoramento (Senasp, 2024).
Controle externo, por observatórios, é vital para revisar bases e assegurar representatividade (Ylonen & Hedegard, 2020). “Quem vigia os vigilantes?” é urgente. A resposta exige governança participativa e transparente, com limites éticos, para garantir cidades inteligentes que reforcem a segurança sem trair o Estado de Direito (O’Neil, 2016; Zuboff, 2019).
A vitimologia nas cidades inteligentes analisa como tecnologias protegem vítimas e aproximam-nas das instituições. Programas como oSmart Sancaoferecem botões de pânico a vítimas de violência doméstica e comerciantes em risco, e integram bases policiais a apps móveis, facilitando a comunicação entre cidadãos e autoridades e aproximando segurança e cidadania. Segundo Osborne e Brown (2013), inovar exige incluir ativamente os usuários; em segurança, isso requer dar voz às comunidades por canais de denúncia, apps colaborativos e transparência policial.
A gestão integrada de dados mapeia incidências. O programa direciona assistência psicológica, jurídica e social, garantindo rondas Maria da Penha, iluminação de áreas críticas e patrulhamento orientado (Weiss et al., 2015; Ferreira et al., 2023). A integração entre bases policiais, saúde e assistência identifica vítimas recorrentes, como mulheres em violência doméstica, ativando protocolos eficazes. Pilotos conectam boletins eletrônicos a serviços especializados, reduzindo burocracia e desgaste emocional e reforçando a centralidade da vítima.
Bodycamsavaliadas por Monteiro et al. (2022) reduziram a letalidade policial e ampliaram a conformidade a protocolos. Em São Paulo, a Senasp (2024) registrou redução de 57% nas mortes por intervenção contra pessoas negras após a adoção das câmeras; a notificação de violência doméstica aumentou 69% em Santa Catarina e 101% em São Paulo (Senasp, 2024).
A transparência incentiva a formalização de ocorrências antes invisíveis, fortalece a confiança e altera a cultura institucional. Inovação e vitimologia reforçam aaccountability: dashboards públicos e plataformas de acompanhamento geram transparência ativa, pressionam por eficiência e podem ter efeito terapêutico ao sinalizar atenção estatal (Barocas & Selbst, 2016; Ylonen & Hedegard, 2020).
Experiências de justiça restaurativa com plataformas de diálogo entre vítimas e ofensores buscam reparação simbólica e prevenir revitimizações. A inovação deve ser inclusiva: nem todas as vítimas têm internet ousmartphones; canais digitais devem complementar, não substituir, os tradicionais.
Políticas orientadas por dados precisam combinar-se com sensibilidade humana e respeito à dignidade. O êxito de iniciativas como oSmart Sancanão se mede só pela queda estatística, mas por aproximar segurança pública e cidadania, garantindo que cada vítima — real ou potencial — sinta-se parte de um projeto urbano mais seguro, justo e humano.
O desafio jurídico das cidades inteligentes não é apenas tecnológico, mas democrático: garantir que a inovação caminhe junto com os direitos fundamentais. Políticas públicas orientadas por dados só terão legitimidade se forem transparentes, participativas e respeitarem os limites constitucionais que protegem a intimidade, a dignidade da pessoa humana e a igualdade. A questão não é negar a tecnologia, mas submetê-la ao crivo do Estado de Direito.
Referências
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Fonte: Conjur
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