Causa madura: CPC x PAF x Ricarf

Retomando a oportunidade de tratar de temas processuaisnesta coluna (https://www.conjur.com.br/colunistas/direto-do-carf/)nesta coluna, o texto de hoje apresenta e, possivelmente, responde algumas perguntas: o que é a causa madura e quais suas hipóteses de aplicação? Viola-se o duplo grau de jurisdição e contraditório? Como fica oreformatio in pejusno processo administrativo fiscal? Súmulas e precedentes vinculantes podem ensejar a aplicação da teoria da causa madura no PAF?

 

Retomado o fôlego, começamos.

 

Na disciplina processual originalmente encampada pelo Código de Processo Civil (CPC) de 1973, doutrina e jurisprudência se manifestavam contrariamente ao exame do mérito da causa pelo Tribunal, em sede de apelação, sem que antes o tivesse feito o juízo de primeiro grau, em razão de violação do duplo grau de jurisdição e supressão de instância. Assim, caso houvesse sentença de extinção do processo sem resolução de mérito, a parte poderia interpor recurso de apelação e, apurando o vício da decisão de origem, o tribunal teria o condão de anulá-la, devolvendo o processo ao primeiro grau para que fosse proferida nova sentença, agora apreciando o mérito.

 

Foi somente no contexto de reforma do CPC/73, pela da Lei nº 10.352/2001, que a normativa processual passou a contar com nova regra sobre o tema: o então artigo 515, §3º.

 

Por meio da Mensagem nº 1.110 (23/08/2000) do trâmite legislativo, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso as razões que suscitavam a proposta de alteração do CPC, consignando que se tratava de “sugestão que valoriza os princípios da instrumentalidade e da efetividade do processo, permitindo-se ao tribunal o julgamento imediato do mérito, naqueles casos em que o juiz não o tenha apreciado, sendo a questão exclusivamente de direito, a causa já esteja em condições de ser inteiramente solucionada”.

 

Dessarte, depois do advento da Lei nº 10.352/2001, o recurso de apelação passou a contar com uma exceção à regra dotantum devolutum quantum apelatum, uma vez que os tribunais passaram a ter autorização legal para apreciar definitivamente causas que ainda não tinham passado por um julgamento de mérito em primeiro grau.

 

Tal autorização legal, conhecida com “teoria da causa madura”, seguiu positivada com o advento do CPC/2015, topograficamente alocada para o art. 1.013 e reconhecida pelo STJ (AgRg no Ag 867.885/MG; REsp 1.798.849/SC e REsp 796.296/MA).

 

Com efeito, ocaputdo art. 1.013 do CPC consagra oefeito devolutivodos recursos, permitindo ao tribunal reanalisar questão já decidida pelo primeiro grau e impugnada via apelação. A restrição do efeito devolutivo à matéria apelada garantea vedação dareformatio in pejus, vale dizer, a reforma da decisão recorrida piorando a situação de quem recorreu em benefício da parte que não o fez.

 

Já o §1º do artigo 1.013 do CPC, vai além do clássicotantum devolutum quantum apelatum(extensão do efeito devolutivo), afirmando aprofundidade do efeito devolutivo, ao estabelecer que serão objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido ventiladas em recurso, permitindo assim que o julgamento em segundo grau ocorra de maneira completa (vide RESp 1.030.817/DF).

 

O raciocínio da profundidade do efeito devolutivo é então ratificado pelo § 2º, ao determinar que quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais.

 

Finalmente, é nos §§ 3º e 4º do art. 1.031 do CPC que se encontram a regras tidas “teoria da causa madura” na vigente legislação processual.

 

Cássio Scarpinella pontua que “o artigo 1.013 amplia sensivelmente também as hipóteses regradas pelo artigo 515, §3º do CPC de 1973 e a possibilidade de julgamento de mérito pelo tribunal, independentemente do reenvio dos autos à primeira instância nos seus verdadeiramente didáticos §§3º e 4º.”Numa síntese, as hipóteses de aplicação da teoria da causa madura são quatro, todas partindo do pressuposto que o processo está em condições de imediato julgamento, ou seja, não demanda produção de provas (cf. EREsp 874.507/SC), quando:

 

Descritas as hipóteses de aplicação da teoria da causa madura, é preciso pontuar que são essas as exatas balizas de exceção ao princípio do duplo grau de jurisdição, do contraditório e da ampla defesa e da vedação doreformatio in pejus. Nenhuma outra.

 

Sobre a juridicidade da regra, Dinamarco é contunde:

 

Não há quebra dodue process of lawnem exclusão do contraditório, porque o julgamento feito pelo tribunal incidirá sobre o processo precisamente no ponto em que incidiria a sentença do juiz inferior; sem privar as partes de qualquer oportunidade para alegar, provar ou argumentar – oportunidade que elas também já não teriam se o processo voltasse para ser sentenciado em primeiro grau jurisdicional. (…)Também já se ouviram vozes no sentido de que o § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil abriria caminho a uma ilegítimareformatio in pejus. (…)Torna-se porém ao que vem sendo dito: o julgamento demeritisque o tribunal fizer nessa oportunidade será o mesmo que faria se houvesse mandado o processo de volta ao primeiro grau, lá ele recebesse sentença, o autor apelasse contra esta e ele, tribunal, afinal voltasse a julgar o mérito. A novidade representada pelo § 3º do art. 515 do Código de Processo Civil nada mais é do que um atalho, legitimado pela aptidão a acelerar os resultados do processo e desejável sempre que isso for feito sem prejuízo a qualquer das partes; ela constituiu mais um lance da luta do legislador contra os males do tempo e representa a ruptura com um velho dogma, o do duplo grau de jurisdição, que por sua vez só se legitima quando for capaz de trazer benefícios, não demoras desnecessárias.

 

Indiscutível, assim, a constitucionalidade das delimitações legais esculpidas para dar azo a aplicação da teoria da causa madura no âmbito do direito processual civil.

 

A questão que se impõe é se tal teoria tem lugar no PAF, esculpido pelo Decreto 70.235/72 e regulado pelo Regimento Interno Carf (Ricarf).

 

Prontamente lembra-se do artigo 15 do CPC, determinando que suas disposições devem preencher lacunas eventualmente existentes em processos administrativos. Vale dizer, o CPC aplica-se subsidiariamente ao PAF, o que poderia conduzir a uma conclusão apressada sobre a plena translação da disciplina do artigo 1.013 do CPC ao contencioso administrativo fiscal, sem qualquer reserva.

 

Não há pressa.

 

O cinquentenário Decreto 70.235/72 foi mais vanguardista e garantista do que a legislação processual.

 

Vanguardista justamente porque nos anos 1970 já trouxe ao PAF a possibilidade de decisão de segundo grau ser proferida mesmo que o mérito do processo não tivesse sido alcançado pela DRJ. Trata-se do artigo 59, §3º: “quando puder decidir do mérito a favor do sujeito passivo a quem aproveitaria a declaração de nulidade, a autoridade julgadora não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.”, partindo do antigo princípio processual de que não há nulidade sem prejuízo (pas de nullité sans grief).

 

Ou seja, no PAF, caso haja uma decisão de primeiro grau nula, porque proferida por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa, poderá a instância recursal deixar de reconhecer essa nulidade e deixar de determinar o retorno dos autos para nova apreciação pela DRJ.Mas somente poderá o fazer quando, no julgamento do recurso voluntário ou do recurso de ofício, a decisão for em sentido favorável ao sujeito passivo da obrigação tributária.

 

Num exemplo bastante corriqueiro: caso haja recurso voluntário contra decisão da DRJ carente de fundamentação, pode o Carf dar provimento ao recurso voluntário no mérito ao invés de proferir decisão afirmando a nulidade do julgadoa quoe ordenando que o ato seja refeito na forma da lei. Não poderia o Carf, contudo, negar provimento ao recurso voluntário, ultrapassando a nulidade.

 

Não há dúvidas, portanto, que o PAF possui norma especial determinando a impossibilidade dereformatio in pejusno contexto da teoria da causa madura, norma essa inexistente no CPC.

 

Uma vez que o CPC só poderia ser aplicado caso não houvesse regra sobre o tema no Decreto 70.235/72 e, ademais, por esse último se tratar de norma especial que prevalece sobre a geral em caso de conflito de leis (artigo 2º, §2º da Lindb), é indubitável a necessidade de observância dos dizeres do artigo 59, §3º do PAF, o que nunca se teve notícia que aconteceu de maneira diversa na jurisprudência administrativa.

 

Exceção deve ser feita à hipótese do artigo 1.013, §4º do CPC: ali não se fala de nulidade da decisãoa quo, mas sim na sua reforma sobre decadência ou prescrição (preliminares de mérito). Assim, estando fora da hipótese do artigo 59, §3º do PAF, que somente cuida de nulidade de decisão administrativa, parece ser inteiramente aplicável a regra processual, permitindo inclusive areformatio in pejus.

 

Buscando o tema “causa madura” na ferramenta de pesquisa de jurisprudência no site do Carf, aparecem diversos precedentes, o que já demonstra a absorção da teoria para o contencioso administrativo.

 

Embora haja decisões expressamente afastando a teoria, privilegiando o duplo grau recursal quando verificada aomissão de análise de argumentos da defesa do contribuinte pela DRJ(Acórdão 3201-011.855), há casos em que o Carf entendeu ser a hipótese de aplicação da teoria da causa madura, por estar o processo inteiramente instruído e pronto para a análise do mérito (Acórdãos 2401-011.756 e 9101-007.114).

 

Ainda, enquanto há julgados que acertam precisamente na aplicação do artigo 59, §3º do Decreto 70.235/72, enfrentando o mérito do feito por entender que inexistia concomitância anteriormente declarada pela DRJ, o faz para dar razão a defesa, provendo o direito pleiteado via recurso voluntário (Acórdão 3401-012.609); existem também casos em que a Turma Ordinária deixou de pronunciar nulidade da decisão não fundamentada da DRJ a respeito de tema de responsabilidade tributária, mas negou provimento ao recurso do responsável solidário que recorreu ao Carf, citando para tanto o inc. III do § 3º do artigo 1.013, mas sem atentar para as arestas do artigo 59, §3º do PAF (Acórdão 2401-012.096).

 

Para a reforma de primeiro grau a respeito de decadência, há precedentes que parecem bem trazer a teoria da causa madura do CPC do PAF, que, como mencionado alhures, não detém regra específica no Decreto 70.235/72 acerca da hipótese (Acórdão 9303-008.566).

 

No mais, é interessante notar que a jurisprudência do Carf é cada vez mais sensível à aplicação de precedentes vinculantes. Por isso, encontramos decisões invocando a teoria da causa madura para aplicação imediata deprecedentes vinculantes dos Tribunais Superiores, para dar razão à defesa do contribuinte (Acórdão 9303-008.564). Entretanto, vale pontuar, que a existência do precedente qualificado em si não atrai necessariamente a teoria da causa madura, por falta de regra nesse sentido. Inclusive, o PL 2.483, ao propor a reforma do PAF, busca trazer tal regra em seu artigo 46.

 

Igualmente interessante é perceber como a jurisprudência qualificada do próprio Tribunal Administrativo, por meio de súmulas Carf, apresenta-se como uma situação especial no contexto da aplicação da teoria da causa madura.

 

É que, sobre as súmulas Carf:i)elas têm o condão de vincular a autoridade julgadora de primeira instância administrativa (artigo 25, §13, Decreto n° 70.235/72);ii)não se conhece de recurso interposto em face de decisão de primeira instância que adote como razão de decidir Súmula do Carf (artigo 101, III, Ricarf);iii)pode-se, por decisão monocrática do presidente de câmara, negar conhecimento a recurso sem explicitação sobre os motivos de fato ou de direito pelos quais o enunciado da súmula não se aplicaria ao caso concreto (artigo 59, XVII, Ricarf);iv)na CSRF, fica dispensado o retorno do processo para julgamento em 2ª instância, quando a matéria remanescente na instância especial for objeto de Súmula do Carf (artigo 111, §5º, Ricarf).

 

Esse regramento específico faz com que sejam superadas nulidades da decisão da DRJ, sendo julgado diretamente o mérito em processos pelo Carf, pela aplicação de suas súmulas, inclusive para negar provimento aos recursos dos contribuintes (2401-011.733; 9101-007.103 e 3001-002.403). Nesses casos é possível perceber a preocupação o tribunal em assentar que está cuidando de casos “exclusivamente de direito” (não havendo fatos ou provas controvertidas), o que justificaria a atração da causa madura.

 

A Teoria da Causa Madura está bem sedimentada no âmbito da legislação processual e do Poder Judiciário. Já no PAF, pela regra especial do artigo 59, §3º do Decreto 70.235/72, pela necessidade de observância de precedentes vinculantes e pela normativa do Ricarf a respeito das súmulas administrativas, existe ainda espaço para considerável discussão a respeito de sua aplicação. Que esse artigo possa servir para sistematizar e impulsionar tais discussões.

 

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Em regra, já que excepcionalmente o Tribunal pode, de ofício, reconhecer uma questão de ordem pública que venha a prejudicar o recorrente (vide AgInt no AREsp 2.541.582/RS e AgInt nos EDcl no AREsp 2.702.809/GO)

 

Mas nesse ponto cumpre lembrar que o art. 10 do CPC traz a regra de “vedação da decisão surpresa” nesse tipo de situação.

 

Novo Código de Processo Civil Anotado.2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 838.

 

Nova Era do Processo Civil.2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. pp. 177 a 181.

 

Regra essa que, em alguma medida, iluminada pelo princípio da primazia da decisão de mérito, foi encampada pelo CPC/20215 no seu art. 488.

Fonte: Conjur


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