Obrigatoriedade da intervençãocustos vulnerabilisem HCs coletivos

No olho do furacão de toda a discussão teórica do Processo Penal coletivo, há três personagens se cruzam quando se fala em “Processo Coletivo de natureza não-sancionatória”:Habeas Corpus coletivo,custos vulnerabiliseDefensoria Pública.

 

O Habeas Corpus coletivo é um remédio constitucional de efeito multiplicador com intuito de reverter a perniciosa lógica de criminalização da pobreza: em vez da clássica libertação de um tradicional corpo privilegiado (normalmente de poderoso empresário branco e rico), propõe-se a libertar muitos (especialmente de pobres, pretos e vulneráveis) através da tutela molecular.

 

Foi assim, por exemplo, no histórico HC 143.641/SP, quando o Supremo Tribunal Federal determinou a substituição da prisão preventiva por domiciliar paratodasas gestantes e mães de crianças pequenas presas no Brasil. Uma luz processual nesse começo de século em que prepondera a expansão acrítica das agências de controle formal.

 

Naquelesignaling, as portas de celas insalubres foram abertas para centenas de mulheres pobres, vulneráveis e invisíveis, dando dignidade à maternidade. E quem mais uma vez estava lá, empunhando dados, argumentos e a institucionalidade para dar força ao pedido? A Defensoria Pública.

 

Constata-se que, na grande maioria dos Habeas Corpus coletivo, a Defensoria Pública é impetrante, interveniente, substituta processual, ou representante de alguma das partes. Ela é ouvida e respeitada.Não há nenhuma coincidência, portanto, na aproximação empírica entre HC coletivo e Defensoria Pública.

 

É a partir daí que abraçamos a ideia de que ocustos vulnerabilis, através da Defensoria Pública, deve sempre ser intimado para intervir nos Habeas Corpus coletivos, independente de quem seja o impetrante (associações, um particular, etc.).

 

A atuação obrigatória da Defensoria Pública comocustos vulnerabilisvem prevista em vários momentos: a Lei de Execução Penal estabelece que a Defensoria “velará pela regular execução da pena” de forma individual e coletiva (artigo 81-A), independente de outras representações processuais. Com base em tal previsão, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, recentemente estabeleceu que“a Defensoria Pública pode atuar comocustos vulnerabilisna execução penal, mesmo na presença de advogado constituído, para garantir a defesa dos direitos dos apenados”(REsp 2.211.681-MA, relator: ministro Joel Ilan Paciornik, T5, j. 5/8/2025, p. 20/8/2025).

 

Em âmbito cível, o CPC exige a intimação defensorial em possessórias coletivas com demandados vulneráveis (artigo 554, §1º), legitimando sua atuação interventiva comocustos vulnerabilis. Trata-se de mais uma das tantas aproximações entre processo coletivo e Defensoria com intervenção obrigatória.

 

A jurisprudência do STF, consolidando tudo, reconheceu a referida atuação defensorial, conforme menções expressas nas ADPFs nº 709, 991, 635 e STP 1.007.

 

Tal função deguardião dos vulneráveis, sem prejuízo de outros apoios institucionais aos grupos vulneráveis, éexclusivada Defensoria Pública, encontrando-se no seu DNA constitucional da instituição (artigo 134,caput, da CF) e não substitui o atuar de eventual advogado constituído e nem a fiscalização da ordem jurídica pelo Ministério Público, mas, por outro lado,acrescenta à mesa processual inegável democracia processual e legitimidade em favor dos vulneráveis.

 

E aqui vem o ponto central: o Habeas Corpus coletivo e ocustos vulnerabilisestão umbilicalmente ligados. O primeiro é a medida que mais beneficia grupos vulneráveis no processo penal. O segundo é a função que mais entende e defende esses grupos. Não é por acaso que, tratando-se de medida tão plural, a Defensoria sejaa maior pesquisadora, defensora, autora e endossadora de HCs coletivosno país.

 

Enquanto o Ministério Público dá parecer compulsório comocustos iurisem recursos criminais (CPP, artigo 610), especialmente em razão de ser odominus litis, atua obrigatoriamente em processos coletivos (artigo 5º, §1º da Lei nº 7.343/85) exercendo, assim, um papel certificador, avalizador e de credibilidade, é a Defensoria Pública quem mais se aproxima comorepresentante adequada da coletividade alvo do braço punitivo do Estado(custos vulnerabiliscomo Estado-Defensor) quando estivermos diante de atuação macro-processual não sancionatória.

 

Daí que, assegurar à Defensoria Pública atuação comocustos vulnerabilisem todos os HCs coletivos é uma medida muito pequena quando posta ao lado da realidade (corpos, sofrimentos e dores) já empiricamente constatada nesteswrits.

 

Não é só uma questão de “paridade de armas”. Trata-se de real conformação judicial à realidade: a Defensoria Pública é a guardiã público-constitucional a ser ouvida em HCs coletivos (viacustos vulnerabilis), com função eminentemente protetiva (e tudo isso, claro, sem prejudicar a execução da missão de outras instituições mais tradicionais nesse cenário).

 

A vulnerabilidade no Brasil Penal tem cor, CEP e renda: o jovem preto de periferia. Esses são elementos conhecidos da Defensoria Pública. Permitir que entidades alienadas da realidade do cárcere permaneçam como (pseudo)protagonistas de medidas estruturais que buscam reverter a seletividade penal equivale a negar acesso à justiça para aqueles que mais precisam.

 

A intervenção obrigatória da Defensoria Pública comocustos vulnerabilisem Habeas Corpus coletivos, portanto, é elemento estruturante inegociável dessa seara dodevido Processo Penal coletivo não punitivoe garante uma musculatura democrática na perspectiva de quem mais precisa ser ouvido, as pessoas e grupos emsituação de vulnerabilidade.

 

Para uma visão criminológica crítica contrária à seletividade penal, cf. SANTOS, Juarez Cirino dos.A criminologia radical. 5. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022; ZAFFARONI, Eugenio Raul.Em busca das penas perdidas:a perda de legitimidade do sistema penal. 5 ed. Trad. Vânia Romano e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2001; BARATTA, Alessandro.Criminologia Crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

 

Não se trata de um precedente, uma vez que foi julgado por apenas umas das Turmas que têm competência para julgar a matéria quando, para se tornar um precedente haveria maior complexidade. Por isso, sobre o adequado enquadramento de um julgado como “precedente”, e a definição dos conceitos deoverruling,signalinge outros, cf. ZANETI JR., Hermes. O valor vinculante dos precedentes: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. Obra citada, ps. 311/442.

 

Para um pouco sobre itinerário da(s) Defensoria(s) Pública(s) nesse processo: GONÇALVES FILHO, Edilson Santana, ROCHA, Jorge Bheron.STF admite legitimidade da Defensoria para intervir comocustos vulnerabilis. Publicado em 4/04/18, disponívelaqui (https://www.conjur.com.br/2018-abr-04/legitimidade-defensoria-intervir-custos-vulnerabilis)aqui.

 

Analisando detidamente os dados sobre quais os maiores impetrantes desses processos, consultar TEMER, Pedro Pessoa.As Misérias do Habeas Corpus Coletivo – de acordo com a nova Lei 14.836/24. Editora Thoth, 2024.

 

MAIA, Maurilio Casas (org.).(Re)pensando custos vulnerabilis e Defensoria Pública: por uma defesa emancipatória dos vulneráveis. São Paulo: Tirant Lo Banch, 2021.

 

Muitos são os autores que defendem que o HC Coletivo pode ser impetrado por qualquer pessoa. Nesse sentido, delege ferenda, Gregório Assagra de Almeida e Rafael de Oliveira Costa, por exemplo: ALMEIDA, Gregório Assagra; COSTA, Rafael de Oliveira.Direito processual penal coletivo – A Tutela Penal dos Bens Jurídicos Coletivos: Direitos ou Interesses Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos.… p. 322). Por outro lado, Jorge Bheron Rocha sustenta plena abertura da legitimação para ser independentemente de demonstração de interesse jurídico, representatividade adequada, pertinência temática, ou, ainda, sequer de capacidade postulatória: ROCHA, Jorge Bheron.Habeas Corpus coletivo: uma proposta de superação do prisma individualista. Tribuna da Defensoria. Noutro passo, Eduardo Dantas, também defende a ampliação da legitimação por intermédio de intepretação extensiva da legitimidade das associações representativas da sociedade civil, ainda sugerindo a legitimidade extraordinária individual e uso de conceitos mais abertos e flexíveis como a representatividade adequada: DANTAS, Eduardo Sousa.Habeas Corpus Coletivo: Cabimento e discussões sobre legitimidade …p. 114). Ver ainda: CHEQUER, Lilian Nássara Miranda.Habeas corpus coletivo. Obra citada, p. 143; PIZZATO, Pablo. HC Coletivo e Legitimidade Ativa: uma visão.In:Olhar Jurídico, portal eletrônico de informações, 2020. Disponívelaqui (https://www.olharjuridico.com.br)aqui. Acesso em 27/06/23; LIMA NETO, Francisco Vieira e DEL PUPO, Thaís Milani.Notas sobre o Habeas Corpus Coletivo: uma Análise a Partir do HC 143.641/SP e do Microssistema do Processo Coletivo.

 

MAIA, Maurilio Casa. Custos Vulnerabilis constitucional: o Estado Defensor entre o Resp nº 1.192.577-RS e a PEC 4/14.Revista Jurídica Consulex,Brasília, DF, ano 18, n. 417, jun. 2014.

 

ZANETI JR., Hermes. CASAS MAIA, Maurilio.Microssistema de Proteção de Proteção dos Vulneráveis e as lentes do Ministério Público e da Defensoria Pública. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2025.

Fonte: Conjur


Voltar

Compartilhar

Todos os direitos reservados ao(s) autor(es) do artigo.

×