É parte inerente de uma democracia a discussão de ideias para desenvolvimento da sociedade. A troca aberta e respeitosa de diferentes perspectivas, opiniões e argumentos é imprescindível para a evolução das instituições e dos instrumentos sociais. Todavia, dentro dessa lógica é também essencial a apresentação de respostas quando a análise dos institutos apresenta uma visão equivocada, podendo levar a entendimentos errados e, especialmente, quando a crítica extrapola os limites do respeito, com possíveis ilações levianas acerca dos motivos que teriam ensejado a criação do objeto da crítica.
Dessa forma, tornou-se premente falar sobre o artigo “ANS estabelece regras para atendimento dos usuários e beneficia empresas infratoras (https://www.conjur.com.br/2025-jul-23/ans-estabelece-regras-para-o-atendimento-dos-usuarios-e-beneficia-empresas-infratoras-com-altos-descontos-em-multas/)ANS estabelece regras para atendimento dos usuários e beneficia empresas infratoras”, que, para além das críticas ordinárias, faz ilações aventando possível captura da ANS pelo mercado na confecção da Resolução Normativa nº 623/2024, afirmando que o normativo penderia para as operadoras.
Frisa-se que a RN nº 623/2024 é resultado de dois anos de trabalho do corpo técnico da ANS, que seguiu todas as etapas previstas de Análise de Impacto Regulatório (AIR), com intensa e plural discussão da minuta através de consulta pública e diversos eventos. Trata-se, portanto, de um normativo cunhado em ampla participação social.
Imprescindível informar que os documentos gerados na construção da RN nº 623/2024 estão disponíveis no site da ANS. Uma leitura atenta pode afastar interpretações equivocadas.
Buscando tornar mais didática essa resposta, passo a transcrever os tópicos do artigo citado que estão calcados em premissas equivocadas, acompanhados do respectivo esclarecimento.
É importante dispor que as balizas trazidas na RN nº 623/2024 foram confeccionadas com base no Decreto nº 11.034/2022, de origem na Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça). Ou seja, a ANS simplesmente seguiu o decreto presidencial que regulamentou a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 — Código de Defesa do Consumidor, na questão das diretrizes e normas sobre o serviço de atendimento ao consumidor.
As exceções execradas pela autora já existiam na RN nº 395/2016 e foram mantidas após a AIR feita pela ANS. O dispositivo é referendado pelo princípio da isonomia material e pela lembrança de que o sistema de saúde suplementar tem sua base no mutualismo.
Assim, com base na sua experiência de mais de 25 anos regulando o mercado, levando-se em conta na análise os tipos e portes de entes regulados e sua história dentro do âmbito das reclamações, é que a ANS entendeu por bem manter tratamento diferenciado para a lida da questão em exame (isonomia material).
Não podemos ignorar que a obrigatoriedade de adoção de uma só regra para todos os tipos de entes regulados poderia resultar em uma medida de alto custo, mas com baixa efetividade. E não podemos esquecer que, no sistema mutualista, os gastos são depois rateados entre todos. Ou seja, a obrigatoriedade sugerida pela autora geraria uma despesa desnecessária, de baixa efetividade e que serviria de base para encarecer as mensalidades dos consumidores.
Ao tomar uma decisão regulatória, o órgão regulador deve fazer uma análise econômica do mercado regulado e sopesar o impacto do que está propondo. Assim, a inteligência regulatória visa a dar espaços para esse tipo de iniciativa, vigiando os resultados a partir do Índice Geral de Reclamações (IGR). Logo, o mais adequado não é ter atendimento presencial integral (24 horas por dia, todos os dias da semana), mas fazer esse atendimento da forma mais resolutiva e da forma mais econômica, de modo que isso não represente uma barreira de entrada para os consumidores com altos custos ineficientes.
Também é preciso ter em perspectiva que a RN nº 623/2024 trouxe o atendimento virtual, sendo certo que esse tipo de atendimento é amplamente usado pela sociedade brasileira.
Segundo o artigo ora questionado, o normativo da ANS não teria avançado, eis que “não assegurou que o primeiro atendente tivesse atribuição para solucionar as demandas assistenciais e/ou outras apresentadas, evitando-se transferências e delongas para a solução”. Além disso, dispôs que, “diante de demandas não assistenciais, o serviço executado por pessoa física pode estar limitado a dias úteis e por oito horas diárias e se forem direcionadas a operadoras odontológicas, com menos de 500 mil beneficiários, mesmo que de urgência e emergência”.
Quanto a esse tópico, é preciso esclarecer que não existe situação de urgência e/ou emergência envolvendo demandas não assistenciais.
O conceito de urgência/emergência está descrito na Lei nº 9.656/1998, que o considera como situações que requerem atendimento médico imediato devido à possibilidade de risco à vida, lesão irreparável ou agravo à saúde. Significa dizer que os casos de urgência/emergência estão umbilicalmente atrelados a questões assistenciais, não havendo fundamento no apontado pela autora.
Quanto a assegurar que o primeiro atendente tivesse atribuição para solucionar demandas, acredita-se que o desconhecimento da matéria talvez possa ter conduzido a autora a essa sugestão pueril e irrealizável.
É que a matéria de saúde suplementar é complexa e ampla, dificilmente seria possível preparar um atendente decall centerpara resolver toda a miríade de situações que são apresentadas todos os dias.
A crítica do artigo é no sentido de que, se não houver efetiva fiscalização e o devido sancionamento, a efetividade das regras não será atingida.
A fiscalização dessas obrigações continuará sendo aferida pela ANS da mesma forma que era verificada, de forma eficaz, na RN nº 395/2016, mediante análise das reclamações que chegam à ANS.
Cumpre destacar que, mesmo padecendo de notórios problemas de falta de pessoal e de sistemas, a ANS aplicou mais de R$ 2 bilhões em multas nos últimos cinco anos e resolveu mais de 80% das reclamações dos beneficiários dentro da fase de mediação eletrônica.
Sustenta o artigo em análise que “atribuiu-se às próprias operadoras a liberdade metodológica de aferir a sua resolutividade e a ANS não estabelece o seu próprio dever de fiscalizar, a contento, o cumprimento obrigatório da resolução em epígrafe”.
Primeiramente, é preciso esclarecer que o dispositivo que trata da criação de metodologia de resolutividade própria pelas operadoras é oriundo dos artigos 8º e 15 do Decreto nº 11.034/2022. Ou seja, a ANS simplesmente atendeu a uma determinação que consta no próprio Código de Defesa do Consumidor.
Frisa-se que não há insumos para uma definição metodológica em normativo de indicadores de resolutividade. É um tema ainda incipiente no setor (bem como inúmeros outros que devem seguir o Decreto do SAC), razão pela qual a Agência, de forma prudente, decidiu aguardar a Senacon, que está na liderança desse projeto (conforme leitura do mencionado artigo 15).
Não o bastante, é preciso acusar o erro da autora envolvendo a questão da métrica da resolutividade.
A resolutividade tratada no parágrafo único do artigo 3º serve para melhoria dos controles, para revisão dos processos de trabalho internos das operadoras, não tendo qualquer impacto na meta de Índice Geral de Reclamações. Em outras palavras, a referida resolutividade não influencia a meta de excelência ou de redução de IGR, que é aferida tendo por base as demandas de reclamação que são recebidas pela ANS.
Nesse ponto, com a devida vênia, o artigo ultrapassou os limites da crítica, adentrando na seara da leviandade.
A afirmação supracitada está calcada nas seguintes passagens:
“A instituição do Índice Geral de Reclamações servirá para dois objetivos que testificam os influxos dos agentes econômicos nas agências reguladoras: 1) a mitigação dos processos sancionadores; e 2) a concessão de descontos nas sanções pecuniárias, ou seja, a real intenção não é o efetivo atendimento qualificado dos usuários.”
“A ANS, sob a alegação de um ato normativo que se volta para aperfeiçoar o atendimento ao consumidor, aproveita o ensejo para a concessão de descontos inadmissíveis em prol de agentes econômicos que desrespeitam os direitos dos destinatários finais.
A teoria da “captura das agências reguladoras” verbera a existência de forte influxo do setor econômico nos seus centros decisórios e, ao que parece, a referida regra resulta de um plexo de interesses que não se volta para mitigar o panorama das práticas abusivas na saúde suplementar. Ademais, a postura da autarquia em beneficiar o mercado é tão explícita que, conquanto uma operadora não consiga atingir a meta de excelência do IGR trimestral, caso alcance a média prevista de acordo com a sua classificação, mesmo assim, obterá o elevado desconto de 60% para as citadas multas.”
Como dito anteriormente, a ANS aplicou nos últimos cinco anos, mais de R$ 2 bilhões em multas. Apesar do valor expressivo, tal sanção não conseguiu cumprir seu caráter preventivo, uma vez que o número de reclamações aumentou paulatinamente nesse período.
Nessa seara, ressalta-se que nos casos em que a mediação eletrônica não funciona, o que a ANS poderá fazer, caso verifique a existência de infração no processo sancionador, é aplicar uma das sanções previstas no artigo 25 da Lei nº 9.656/98, não estando entre elas poder de obrigação de fazer, isto é, de determinar que a infratora realize o procedimento negado, que pague o reembolso solicitado etc.
Dessa forma, os incentivos apresentados pela RN nº 623/2024 têm por escopo uma mudança da postura regulatória dos entes regulados, para que prestem um serviço de maior qualidade aos consumidores.
Para tanto, foi realizado estudo que estabeleceu dois critérios para definição das metas de desempenho para os fins propostos. O primeiro, tendo como premissa que a operadora deve prestar bons serviços a seus beneficiários, é que a operadora tenha um IGR baixo no período mais recente (últimos três meses). O segundo, como foi observado um aumento do IGR ao longo do tempo, estabelece que a operadora apresente uma melhoria do IGR em dois trimestres consecutivos.
Assim, para aquelas operadoras que têm poucas reclamações ou que demonstrem busca contínua na melhora do seu IGR, ou seja, para as operadoras que prestam ou estão claramente se esforçando para prestar um bom serviço aos seus consumidores, será dado um tratamento mais benevolente.
Já para aquelas que não atendem bem seus consumidores, além da má publicidade, há a previsão de aplicação de mais uma agravante, ou seja, haverá uma penalização muito maior.
Destaca-se que a medida de indução escolhida encontra guarita no modelo de fiscalização responsiva, adotado por inúmeras agências reguladoras, no Brasil e no exterior, sendo inclusive indicação da OCDE. O modelo responsivo tem por objetivo a busca pelo estímulo da prevenção e indução no mercado regulado. Com base em análise, em inteligência regulatória busca-se a orientação das empresas reguladas para que passem a prestar adequadamente o serviço para o qual foram contratadas, para que atuem dentro das balizas determinadas pela Agência.
Segundo o artigo, a ANS teria mitigado a sanção por prever a possibilidade de aplicar o instituto da advertência, o qual não existia dentro do artigo 99 da RN nº 489/2022 antes do advento da RN nº 623/2024.
Ocorre que esse a aplicação do instituto da advertência deve observar as disposições do artigo 5º da RN nº 489/2022, que determina que o uso dessa penalidade exige que o preceito secundário do tipo infrativo traga sua previsão. Além disso, a infração cometida:
Entende-se por lesão irreversível ao bem jurídico tutelado a conduta que afeta de forma definitiva interesses alheios protegidos pelo direito. Os tipos infrativos da RN nº 489/2022 têm por bem jurídico o interesse público na assistência suplementar à saúde, de forma a garantir o acesso ou cobertura previstos em lei, com qualidade e eficiência.
A conduta da infratora terá acarretado dano aos beneficiários quando eles tiverem suas garantias de atendimento negada ou dificultada, seja por uma negativa de cobertura, por impedimento ou restrição na participação em plano de saúde, por recontagem de carência, pelo não cumprimento de obrigação de natureza contratual, pela rescisão ou suspensão irregular do contrato, dentre outros. Assim também como os danos financeiros, como nos casos de reajustes em desacordo com a lei, a regulamentação da ANS ou o contrato.
Ademais, o termo “poderá” do §2º do artigo 5º é interpretado como um “poder-dever” de aplicar a penalidade mais gravosa. Ou seja, no caso de reincidência não se aplica advertência.
Dessa forma, entendemos desarrazoada a crítica de que a ANS teria fragilizado o tipo do artigo 99 da RN nº 489/2022.
A autora ainda alegou que a ANS teria atendido as reinvindicações do mercado regulado ao revogar o § 1º do artigo 92. Ocorre que essa revogação ocorreu por uma mera formalidade, tendo em vista que a conduta já se encontrava prevista no mencionado artigo 99 (o qual tem o mesmo valor de multa da que estava prevista para o §1º do artigo 99).
Ainda que a RN nº 623/2024 tenha recebido inúmeros elogios, sempre haverá campo para sua discussão e para que sejam tecidas críticas. Todavia a existência dessa arena democrática não pode servir para tolerarmos acusações levianas, nem distorções na interpretação do normativo, que possam induzir a entendimentos equivocados, razão pela qual essa réplica é essencial e necessária, deixando sempre aberta a porta para o debate sobre os normativos e processos de trabalho da ANS, mas de forma respeitosa e ponderada.
Fonte: Conjur
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