O artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) — segundo o qual “[o] agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro” — procurou oferecer porto seguro ao gestor bem-intencionado, ou que, no interesse da gestão pública, age de maneira inovadora.
Calcado na premissa de que “não se pode punir pessoalmente o gestor público que agiu de acordo com interpretação ou solução razoável, ainda que considerada equivocada posteriormente”, o dispositivo se contrapôs “à noção persecutória de que toda falha na aplicação da lei, além de ser corrigida, teria também que gerar punições a seu autor”.Para a Lindb, o risco de falhar e as consequências da incerteza do direito não podem cair nas costas do gestor.
Do mesmo modo que os demais dispositivos da Lindb — uma lei-bússola voltada a orientar a criação, interpretação e aplicação do direito —, o artigo 28 projeta diretriz, mas não tem o condão de, por si só, transformar a realidade. Sua capacidade de influir, como é natural, depende dos contornos que, na prática, lhe forem fixados por controles estatais, os principais destinatários da norma.
Pesquisa (https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/2022-03/relatorio-de-pesquisa_observatorio-do-tcu_aplicacao-dos-novos-dispositivos-da-lindb-pelo-tcu.pdf)Pesquisarealizada pelo Observatório do TCU da FGV Direito SP + Sociedade Brasileira de Direito Público para verificar o modo como os dispositivos acrescentados à Lindb pelo legislador de 2018 vinham sendo manejados pela Corte de Contas federal identificou que, quanto à hipótese de responsabilização de agentes públicos por atos culposos, a incidência do artigo 28 estaria sendo “mitigada em razão do entendimento de que ele não se aplicaria aos casos envolvendo dano ao erário” (p. 33).
A conclusão de que a imputação de débito a agentes públicos prescindiria de dolo ou erro grosseiro acabou por esvaziar o alcance do artigo 28 da Lindb justamente nas situações em que o TCU costuma impor condenações com maior repercussão financeira e que, por isso, poderia produzir maior impacto. Em 2024, por exemplo, o TCU condenou em débito cerca de R$ 7 bilhões, ao passo que aplicou cerca de R$ 1,1 bilhões em multa.A posição do Tribunal despertou críticas por parte da literatura.
É possível, contudo, que o TCU tenha abandonado a leitura inicial do artigo 28 da Lindb, inaugurando nova fase em sua jurisprudência. É o que se infere da leitura doacórdão 1.460, de 2025 (https://www.conjur.com.br/2025-jul-30/nova-economia-mundial-vai-exigir-bancas-versateis-poliglotas-e-boas-de-negociacao/)acórdão 1.460, de 2025.
O caso versava sobre recurso de revisão interposto em face de acórdão que havia julgado as contas de ex-prefeito irregulares, imputando-lhe débito solidário e aplicando-lhe multa. As supostas irregularidades incluiriam dispensa injustificada de licitação, liquidação irregular de despesas e sobrepreço decorrente da superestimação de taxas de encargos sociais e benefícios e despesas indiretas.
Ao analisar a conduta do ex-prefeito, o TCU constatou “sua absolvição em ação penal relativa aos mesmos fatos, confirmada em decisão transitada em julgado” e avaliou que “não havia condições objetivas para que ele, na condição de ‘homem médio’ e sem expertise específica, percebesse eventuais irregularidades nos preços contratados”. Assim, nos termos do voto do relator, decidiu que estaria afastada “a reprovabilidade da conduta do agente homologador [o ex-prefeito] e, por conseguinte, a sua responsabilidade pelo débito”.
O interessante é que, a despeito de a ausência de erro grosseiro ter sido suficiente para afastar a responsabilidade do ex-prefeito, o relator teve por bem “enfrentar diretamente a tese sustentada pela unidade instrutora de que a exigência de culpa grave, prevista no artigo 28 da Lindb, não se aplicaria à responsabilidade financeira por dano ao erário”.
Em voto ao qual aderiram os demais ministros do TCU, afirmou o relator que “[a] imputação de débito a um agente público, tornando-o pessoalmente responsável pela restituição de valores dos quais não se beneficiou diretamente, transcende a mera recomposição do erário”, não podendo “prescindir da análise rigorosa da culpabilidade do gestor”.
A obrigação primária de ressarcir o dano “recai[ria] sobre quem [fosse] indevidamente beneficiado”. A “solidariedade do agente público nessa obrigação não [seria] automática; ela [seria] tipo de responsabilidade que depende da comprovação de que sua conduta contribuiu para o prejuízo com, no mínimo, culpa grave”. Tal entendimento, segundo o relator, já teria sido consolidado pelo plenário quando do julgamento doacórdão 886, de 2025 (https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/documento/acordao-completo/*/KEY:ACORDAO-COMPLETO-2686562/NUMACORDAOINT%20asc/0)acórdão 886, de 2025.
O movimento recente do TCU é bastante positivo. Ao remover limitação artificial aos efeitos do artigo 28 da Lindb no controle de contas, o Tribunal dá passo relevante no sentido de promover maior previsibilidade e segurança jurídica no ambiente da gestão pública. Para que esse avanço se consolide, é fundamental que as decisões mais recentes se convertam em jurisprudência estável.
Carlos Ari Sundfeld.Direito Administrativo – o novo olhar da LINDB. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 54.
[2] Cf. Gustavo Binenbojm e André Cyrino. “O art. 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo”.Revista De Direito Administrativo, 2018, p. 206.Aqui (https://doi.org/10.12660/rda.v0.2018.77655)Aqui.
Nesse mesmo sentido, ver André Rosilho e Juliana Palma. “Constitucionalidade do Direito ao Erro do Gestor Público do art. 28 da Nova LINDB”.Revista da CGU, v. 13, n. 23, p. 48, 2021. DOI:aqui (https://doi.org/10.36428/revistadacgu.v13i23.386)aqui. Disponívelaqui (https://revista.cgu.gov.br/Revista_da_CGU/article/view/386)aqui; e Rodrigo Valgas dos Santos. “Art. 28 da LINDB: a cláusula de proteção decisória do agente público no direito brasileiro”, em Rafael Ramos (coord.).Comentários à nova LINDB: Lei nº 13.655/2018, 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2025.
Ver, por exemplo, acórdão 2.872, de 2019 – plenário; acórdão 2.391, de 2018 – plenário; acórdão 2.860, de 2018 – plenário; acórdão 2.768, de 2019 – plenário; acórdão 929, de 2019 – 2ª câmara; acórdão 986, de 2019 – plenário; acórdão 5.547, de 2019 – 1ª câmara; acórdão 173, de 2019 – plenário.
[4] Tribunal de Contas da União.Relatório de Gestão do Tribunal de Contas da União – 2024. Brasília: TCU, Secretaria-Geral da Presidência, Secretaria-Geral do Controle Externo, Secretaria-Geral de Administração, 2025, p. 110.Aqui (https://portal.tcu.gov.br/publicacoes-institucionais/relatorio-de-gestao/relatorio-de-gestao-2024)Aqui.
[5] Ver, por exemplo, André Rosilho e Mariana Vilella (coord.). Relatório de Pesquisa: “Aplicação dos Novos Dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) pelo Tribunal de Contas da União”. FGV Direito SP, 2021.Aqui (https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/2022-03/relatorio-de-pesquisa_observatorio-do-tcu_aplicacao-dos-novos-dispositivos-da-lindb-pelo-tcu.pdf)Aqui; e Pedro de Hollanda Dionísio.O direito ao erro do administrador público no Brasil: contexto, fundamentos e parâmetros. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2019.
Fonte: Conjur
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