Descumprimento da lei como ideologia política

A sérieEm Nome do Céu, disponível emstreaming, aborda a prática de crimes por integrantes de uma comunidade mórmon pertencente à Igreja SUD (Igreja Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias) que desejavam se opor a qualquer interferência do Estado. A revolta teve início quando o líder do grupo passou a pregar que a liberdade concedida pelo Pai Celestial isentaria seus irmãos de pagar tributos. Depois disso, o grupo tentou se opor a qualquer tipo de ingerência estatal em seus hábitos. Algo muito parecido com o que, na vida real, foi idealizado por Osho naRajneeshpuram, uma comunidade utópica e autossuficiente fundada no condado de Wasco, em Oregon, nos anos 1980 — a quem interessar, recomendo ver o excelente documentárioWild Wild Country.

 

A obrigação de se submeter ao Estado pode ser questionada de diversas formas. A prática de um crime é um bom exemplo. Pagar tributos? Muita gente não gosta. E por isso há sempre um ambiente tensionado por aqueles que não aceitam seus compromissos fiscais. A novidade é que esse estressamento das instituições vem gradualmente abandonando a clandestinidade para ganhar corpo enquanto ideologia política ostensiva.

 

Javier Milei concedeu recentemente uma entrevista elogiando sonegadores e desdenhando de quem paga impostos. Donald Trump, aquele que se intitula “líder do mundo livre”, bombardeou o Irã sem autorização do Congresso americano, descumprindo o artigo 1° da Constituição. E suas ordens mais recentes sobre imigração, pautas econômicas etc. tem deixado claro que a lei e o Poder Judiciário não são preocupações suas.

 

Esseestado de ilegalidadetambém é notado no Brasil. Os exemplos são muitos. Durante a pandemia, decisões políticas variadas, em todos os níveis da federação, afrontaram as mais básicas premissas legais de proteção da saúde pública (para lembrar: o caos de oxigênio em Manaus). Hoje sabe-se que a Lava Jato foi um celeiro de instrumentalização privada de funções públicas por Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e seus asseclas. Escrevi sobre isso lá em 2019. E o que já veio à tona sobre a tentativa de golpe em 8 de Janeiro deixou bem claro que agentes públicos e segmentos da população colocaram-se acima da lei e das instituições.

 

Obviamente que essa postura institucionalnormalizaa narrativa de que não se sujeitar ao ordenamento jurídico seja algo razoável. Léo Lins, após ter sido condenado a oito anos de prisão por destilar preconceito em seustand up, vem participando de um novo show que segue o mesmo roteiro criminoso; com o diferencial de que telefones estão proibidos. Quase uma súplica pela decretação de sua própria prisão preventiva. Uma postura covarde bem semelhante à de Eduardo Bolsonaro ao promover, sob a aba de Trump, novos atentados ao regime democrático.

 

Esse movimento de desprezo pelo Estado democrático de Direito é uma pauta da extrema direita em nível mundial. Alguns líderes políticos estão descontentes com um princípio basilar de qualquer democracia: há muito nos lembra Lenio Streckque, havendo tensão entre poderes, a última palavra é do Judiciário.

 

É bem fácil entender o porquê desse ódio contemporâneo a quem desempenha essa moderação: todo tirano deseja governar livremente, sem qualquer interferência externa. Se a lei e o Judiciário se opõem a isso, então melhor acabar com ambos. Ponha isso tudo numa panela e acrescente o controle de narrativas pelas redes sociais para produzir o bolo perfeito: o Estado de Direito é um entrave ao regresso do messias que todos aguardam. Não é por acaso que a fundamental separação entre Estado e igreja vive seus piores dias. Quem somos nós, humanos, para dizer o que o Salvador pode ou não fazer?!

 

John Thompsondesenvolveu um interessante estudo dateoria da ideologia, aplicando suas conclusões àteoria socialcontextualizada na era dos meios de comunicação de massa. Ele propõe dois modelos diversos para a sua significação:concepções neutraseconcepções críticasde ideologia.

 

As primeiras são aquelas utilizadas para caracterizar fenômenos ideológicos, sem implicar que esses fenômenos sejam, necessariamente, enganadores e ilusórios com os interesses de algum grupo particular. Nesse rumo, a palavraideologiasignifica a representação de um aspecto da vida ou uma forma de investigação social, independentemente de estar relacionada à transformação ou à preservação da ordem social. Estas noções geram categorias ordenadas nos grupos‘ismos’, tais como o socialismo, o capitalismo, o comunismo etc. Considera-seneutraporque, neste sentido, “a ideologia pode ser necessária tanto para manter submissos os grupos, em sua luta contra a ordem social, como para os grupos dominantes, na sua defesa do status quo”.

 

Na segunda acepção, a palavraideologiaé empregada num sentido crítico, negativo ou pejorativo. Aqui, todo modelo que seja taxado deideológicoé tido como enganador, ilusório ou parcial. A própria caracterização de fenômenos comoideologiatraz consigo um criticismo implícito ou a própria condenação desses fenômenos. Esta era a visão de Marx, para quem a ideologia seria um sistema de representações que escondem, enganam e que, ao fazer isso, serve para manter relações de dominação das classes dominantes às classes inferiores.

 

A partir dessa distinção, Thompson propõe um conceitocríticodeideologiaque leva em consideração ingredientes das diversas categorias revisadas. Seu ponto de partida é de índole marxista, ao considerar que o conceito deideologiaestá, necessariamente, relacionado ao conceito dedominação, ao modeloassimétrico de podertravado entre duas ou mais relações sociais. Nesse rumo, formas simbólicas contestatórias de um determinadostatus quonão seriam, para Thompson,ideologiasno sentido estrito proposto por ele.

 

Mas a tese vai além da matriz marxista em relação a três aspectos:

 

a) Thompson não considera que as formas simbólicas tenham de ser errôneas ou ilusórias para que possam ser consideradasideologias, isto é, reconhece que o sentidonegativoé contingente, mas não necessário: o que interessa, primordialmente, não é a verdade ou falsidade das formas simbólicas, mas sim as maneiras como estas formas servem, em circunstâncias particulares, para criar ou manter situações de dominação;

 

b) as relações simbólicas de dominação não ocorrem apenas nas relações declasses— como dizia Marx —, mas também em outras relações sociais, não necessariamente associadas ao fluxo do capital: entre pais e filhos, entre grupos étnicos, entre Estado e indivíduo etc., travam-se estratégias simbólicas de poder;

 

c) as formas simbólicas não são meras representações capazes de articular ou obscurecer relações sociais ou interesses constituídos num nível pré-simbólico, mas, ao contrário, estão contínua e criativamente implicadas na constituição das relações sociais como tais. Assim, as ideologias não produzem apenas relações de sentido tendentes amanteruma relação de dominação, mas, também, adesenvolvera continuidade desta relação.

 

A esses três aspectos darelação de dominaçãode todaideologia, Thompson agrega um último fator: a necessidade de as estratégias de exercício do poder simbólico serem analisadas no contexto cultural onde elas são instrumentalizadas. O discurso sobre direitos humanos — exemplifica— pode representar a manutenção de umstatus quonum determinado contexto, mas pode ser considerado subversivo noutro. Em síntese: para Thompson,ideologiaé o instrumento deprodução de sentidoque atua,num contexto histórico-social determinado, para estabelecer e sustentarrelações de poderassimétricas.

 

Há algo de novo nos exemplos deestado de ilegalidadeque citei acima. O descumprimento do direito não é privilégio do mundo atual. Vou ficar no meu quadrado. No segmento das ciências criminais, a criminologia já nos mostrou que há uma diferença entre violar a lei penal praticando um crime (criminalização primária) e ser efetivamente alcançado pelo poder punitivo (criminalização secundária). Ser criminoso é diferente de ser criminalizado. Criminosos todos somos. Todos nós, em alguma medida, violamos a lei (só para dar um exemplo: transferir pontos de multas de trânsito para outras pessoas é crime de falsidade ideológica, ok?). Mas nem todos nós ficamos submetidos ao poder punitivo. Ser criminalizado pressupõe submeter-se a um processo seletivo de escolha que normalmente recai sobre pessoas vulneráveis. Basta pesquisar a raça preponderante no sistema prisional para entendermos isso.

 

Zaffaroni, no clássicoEm Busca das Penas Perdidas, já nos falava da incoerência do direito penal: como justificar um modelo jurídico que, caso aplicadofull, emperraria o sistema social? Todos nós iríamos em cana. Por isso é que o sistema penal deve obrigatoriamente selecionar o público que será ideologicamente controlado. O Direito Penal foi feito para não funcionar. Ele é um instrumento de controle social meticulosamente pensado e alimentado.

 

A significação iluminista de violação da lei — em especial, da lei penal — trazia consigo um traço de identidade cultural bem claro: apesar da seletividade acima referida, o crime era algo normalmente clandestino, uma ação desvalorada. Afrontar o direito não era motivo de orgulho, tampouco caracterizava bandeira política.

 

Esse é o ponto que hoje a gente percebe estar em transformação. Pipocam em nosso colo exemplos diários de que segmentos da política mundial assumiram o compromisso de aniquilar o Estado democrático de Direito. Está em andamento um movimento mundial de expulsão do Poder Judiciário do centro de gravidade do regime democrático. E não se trata de apenas substituí-lo por um tirano qualquer que ocupe a chefia do Poder Executivo. Eles são instrumentos de oligopólios tecnológicos que não desejam o direito por perto, pois não querem interferência alguma em suas decisões.

 

Maria Helena Chauí nos fala naatropiae naacroniado mundo atual. As redes sociais retiram a nossa capacidade de nos relacionar com o espaço e com o tempo. De questionarmos a verdade. A verdade me é dada por aquilo que minhas relações digitais transmitem. E quando sou capturado por esse ambiente, a minha domesticação digital é plena. Viro cúmplice dessa nova subjetividade. O resultado disso é que vivemos uma fantasia de nos sentirmos livres porque apertamos este ou aquele botão. Quando, na verdade, essa tomada de decisão não é mais nossa. A decisão nos é dada sem percebermos. Fecha-se, com isso, o círculo de controle social.

 

Então, os tiranos que vão e vem são meros personagens de uma ideologia política que tem por trás a substituição do regime democrático por um regime que talvez sequer saibamos exatamente o que será. Mostrar a todos que o descumprimento da lei é possível e recomendável é apenas uma estratégia para que o Estado Democrático de Direito seja assassinado. Quanto mais caos, mais difícil captar a verdade. Uma população confusa é mais fácil de ser flambada. Por isso é que normalizar o descumprimento da lei e o descrédito de instituições seja uma das estratégias dessa ideologia política que perigosamente se avizinha como instrumento de dominação.

 

Não é necessário ter o dom da premonição para antevermos que, se nossa democracia sucumbir, em seguida estaremos debatendo a convocação de uma nova assembleia constituinte. Será o fechamento perverso do ciclo anti-democrático. E pior: vendido como se democracia fosse.

 

__________________________________

 

Aqui (https://www.conjur.com.br/2025-mai-21/milei-elogia-sonegadores-e-desdenha-de-quem-paga-impostos/)Aqui

 

Aqui (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2025/07/17/casa-branca-rebate-lula-trump-nao-tenta-ser-imperador-do-mundo.htm)Aqui

 

Aqui (https://www.conjur.com.br/2019-jun-14/andrei-zenkner-schmidt-corrupcao-gotham-city/)Aqui

 

Aqui (https://www.metropoles.com/celebridades/leo-lins-lacra-celulares-de-publico-em-nova-turne-de-comedia)Aqui

 

STRECK, Lenio Luiz.Hermenêutica Jurídica (e)m Crise.  Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1999, pp. 37-38.

 

THOMPSON, John B.Ideologia e Cultura Moderna. 5 ed. Trad. por Carmen Grisciet al. Petrópolis : Vozes, 2000, pp. 43-99.

 

THOMPSON, John. B.Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 72-73.

 

THOMPSON, John. B.Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 73.

 

V. MARX, Karl.Las Luchas de Clases en Francia de 1848 a 1850. [s.t.]. Moscú : Progreso, 1979.

 

THOMPSON, John. B.Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 76.

 

THOMPSON, John. B.Ideologias e Cultura Moderna, cit., pp. 76-79.

 

THOMPSON, John. B.Ideologias e Cultura Moderna, cit., p. 18.

 

Aqui (https://www.youtube.com/watch?v=qIiBXRG4JAw)Aqui

Fonte: Conjur


Voltar

Compartilhar

Todos os direitos reservados ao(s) autor(es) do artigo.

×