As pessoas mais antigas, certamente, já se depararam com algum personagem caricatural criado pela ficção brasileira retratando o funcionário público como desleixado e preguiçoso. Quem não se lembra do personagem emblemático Mendonça da sérieA Grande Família, que era totalmente descompromissado com a eficiência do serviço público e que só queria “bater o ponto”? Desde então, o mundo mudou; as pessoas mudaram e continuam mudando todos os dias.
Tonico Pereira interpretava Mendonça
Neste contexto de movimentos e inovações, o setor público sempre veio a reboque do setor privado, seja na esfera legislativa, ou na adoção de ferramentas de gestão, metas de produtividade, eficiência, resultados, tudo comprovando que o perfil do serviço público anda no encalço de vários institutos da economia de mercado, com objetivo de atender às infinitas demandas dos administrados, seja no campo da saúde, educação, segurança pública, dentre outras tantas.
A gestão do serviço público oferecido pelo Poder Judiciário não é diferente, ou seja, utiliza inúmeras ferramentas de gestão originárias do setor privado para alcançar mais transparência, celeridade, e melhores resultados. Desta forma, a cultura organizacional atual do Judiciário brasileiro conta com conceitos altamente alinhados com a mais modernas teorias de planejamento estratégico, competências gerenciais, de metas de produtividade, gestão de pessoas,rapport,inovação tecnológicas, ou seja, uma infinidade de instrumentos que antes só eram utilizadas no setor privado, e que foram, definitivamente, incorporadas ao serviço público.
Além da similaridade das ferramentas gerenciais usadas no setor privado, as esferas governamentais recebem pessoas — independentemente da forma de acesso — que refletem a dinâmica da sociedade e das relações do trabalho. E neste ponto, a pandemia de Covid-19 apressou inúmeras mudanças, que, fatalmente, iria acontecer no futuro próximo, mas que foram abreviadas pelo contexto de isolamento social, principalmente.
Seja em razão dos seus integrantes, ou pelos métodos gerenciais, a administração pública reflete o mercado privado. As transformações ocorridas aqui, necessariamente, ecoam lá.
E como estamos agora? Passadas as aflições pandêmicas, nitidamente, as pessoas — principalmente da Geração Z — passaram a repensar suas prioridades na vida: prefiro curtir minha família a fazer horas extras; viajar a fazer uma boa poupança; ter um lazer a gastar horas de dedicação à empresa. Essa tendência foi viralizada em razão de vídeos publicados em 2021, no Tik Tok, por Zaid Khan, um engenheiro de 24 anos, morador dos Estados Unidos, abordando sua relação com o trabalho, como por exemplo, que o trabalho não deveria ser sua vida.
Esse movimento recebeu o nome dequiet quitting, que embora seja traduzido como “desistência silenciosa”, não significa desistir, mas a adoção de um comportamento passivo em relação às atribuições relacionadas ao trabalho. Em poucas palavras: fazer o mínimo necessário para manter se manter no cargo; fazer apenas o previsto no contrato de trabalho. Algum tempo depois surgiu, ainda, o movimentoQuiet ambiotion,traduzido, desta vez, como “ambição quieta”, referindo-se aos profissionais que, apesar de comprometidos com o trabalho, não desejam ocupar posição de liderança, simplesmente por opção, por determinação em não liderar, caracterizando o profissional que coloca em primeiro plano sua saúde mental e sua qualidade de vida, recusando cargos mais altos e com maiores atribuições e responsabilidades. Na ambição quieta o colaborador, apesar de estar satisfeito com a empresa, evita responsabilidades, mesmo diante de uma recompensa financeira.
Retornando à ideia do espelhamento entre o setor privado e público, indaga-se: há espaço para oquiet quittingequiet ambitionno serviço público do Poder Judiciário? Poderia o servidor público, magistrados e gestores fazerem o mínimo possível nas suas tarefas funcionais e até recusarem cargos de liderança e de maior responsabilidade dentro da instituição sob o manto da tão sonhada estabilidade?
A resposta não é simples, entretanto, investigar as causas e motivos destes movimentos nos permite pensar em alternativas para lidar com a dinâmica da vida em sociedade, com os conflitos geracionais, e sobretudo, como melhorar a prestação do serviço público aos administrados, pois essa é a principal razão do estado.
Estariam os jovens desinteressados pelo trabalho?Quiet quittingequiet ambitionseriam uma reação à sobrecarga de trabalho e a cultura de estar sempre disponível para o trabalho?
Independentemente da causa, podemos concordar que a busca pelo equilíbrio na relação vida pessoal e carreira é necessário para a saúde mental de qualquer trabalhador, inclusive dos agentes públicos, certo? Então, partindo deste pressuposto, podemos afirmar, que sem dúvidas, a desconexão do servidor público com a razão de existir da instituição na qual trabalha gera falta de interesse pelo seu trabalho, e ainda, existência de lideranças altamente centralizadoras, que não permitem a participação e autonomia da equipe na solução dos problemas enfrentados no trabalho, geram desinteresse por parte do agente público. Uma equipe que só é informada da solução, não sentirá pertencimento ao trabalho, tampouco engajamento à instituição que labora.
Outro fator que traz prejuízos ao engajamento do servidor público nas suas atividades funcionais é a ausência de reconhecimento, feedback autêntico, regras claras sobre o propósito da atividade, facilitando, assim a instalação doquiet quittingequiet ambitionno clima organizacional.
O desinteresse pelo trabalho também tem causas geracionais, a começar pela escolha da profissão, pois se antes a profissão era para toda vida, atualmente, a ideia de uma carreira longa e estável, dentro de uma mesma corporação, não parece ter relevância para os mais jovens. Da mesma forma, em tempos atuais, o emprego não é sinônimo de carreira, como era antigamente, sendo altamente mutável.
Aqui cabe um contraponto em relação ao que se denominou ambição silenciosa, pois nem todos os agentes públicos têm perfil para liderança, de forma que é totalmente legítimo, a recusa em ocupar cargos de chefia, sob pena de nomear pessoas equivocadas para cargos estratégicos. O que não se admite no serviço público é a negativa de assumir responsabilidades relacionadas à atribuição e ainda, a ausência de conduta proativa, vez que a conduta reativa simboliza despreparo no planejamento estratégico.
Por fim, esses fenômenos — as demissões silenciosas e a falta de ambição — podem ser resultado da falta de conexão consigo mesmo. E aqui cabe uma reflexão: o que move os agentes públicos no trabalho? A motivação dos adeptos dos“quiets”seria apenas a recompensa financeira pelo labor? Trabalho para meu sustento material?
Daniel H. Pink, em seu livroMotivação 3.0 Drivedestaca que a motivação das pessoas no mundo contemporâneo é distinta da motivação do passado, que se baseava no sistema de “recompensas e punições”, de forma que não tem mais respaldo para grandes projetos, pois se trata de algo externo. Pink sugere que o cidadão moderno é motivado por três pilares intrínsecos: autonomia (necessidade de dirigir a própria vida), excelência (a necessidade humana de se tornar cada vez melhor em algo relevante) e propósito (o desejo de fazer algo superior a nós).
Trazendo a motivação defendida por Daniel Pink para o serviço público no Poder Judiciário, é imperioso criar um clima organizacional dotado de autonomia para que o agente público fomente sua criatividade em busca de soluções para os diversos problemas que lhe são apresentados, além de capacitá-lo para exercer com perícia suas atribuições, e por fim, estabelecer um senso de propósito no seu trabalho, fazendo, efetivamente,jusao nome “servidor público”.
Além da motivação intrínseca, para afastar oquiet quittingequiet ambitiondo serviço público a liderança deve proceder com diálogos honestos, empatia, escuta ativa e sobretudo adotar um clima organizacional onde a saúde mental é prioridade entre os membros da equipe.
Vivemos em um contexto dinâmico, e o setor governamental não fica alheio às tendências comportamentais dos seus agentes, entretanto, no serviço público, tal como se apresenta na atualidade, não há espaço para fazer só o mínimo necessário a fim de evitar uma eventual demissão, como também não há lugar para recusar injustificadas de maiores responsabilidades, desde que tudo isso seja realizado com equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, pois são áreas indissociáveis da vida humana, refletindo uma sobre a outra, de forma inevitável.
Fonte: Conjur
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