Ainda que tenha sido promulgado já no século 21, o Código Civil ainda abriga dispositivos que operam discriminações incompatíveis com os princípios da Constituição. Um dos exemplos mais evidentes deste descompasso é a exclusão do cônjuge ou companheiro casado sob o regime da separação obrigatória de bens da sucessão hereditária, prevista no inciso I do artigo 1.829 do Código Civil. Sob pretexto de proteção patrimonial, a exclusão também é discriminatória, uma vez que cria uma categoria inferior de cônjuge, desprovida de direitos sucessórios básicos.
O dispositivo legal está assim disposto:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: (Vide Recurso Extraordinário nº 646.721) (Vide Recurso Extraordinário nº 878.694)I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente,salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares”(Grifo do articulista). (Código Civil, 1.829, I)
Entretanto, o texto contraria o disposto nos artigos 1º, III; 3º, IV; 5º, I e X; 226, § 3º; e 230,caput, da Constituição, que determinam a observância, dentre outros, dos princípios da: a) dignidade da pessoa humana (CF, 1º, III); b) promoção do bem de todos,sem preconceitos deorigem, raça, sexo, cor,idadee quaisquer outras formas de discriminação (CF, 3º, IV); c) igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (CF, 5º, I); d) inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem e da dignidade das pessoas, especialmente as idosas (CF, 5º, X, e 230,Caput); e, e) proteção das entidades familiares, inclusive mediante união estável (CF, 226, § 3º);
Ou seja, referida pretensão de exclusão constitui-se em evidente e inadmissível discriminação em relação aos demais herdeiros e aos cônjuges/companheiros que se unam sobre outro regime de bens, caracterizando-se, ainda, como desrespeito à proteção à família e à dignidade da pessoa humana. Negar ao cônjuge/companheiro, casado ou unido pelo regime de separação obrigatória de bens, o direito à herança compromete sua dignidade.
O tratamento desigual entre as pessoas é absolutamente repelido pela Lei Maior. Sendo assim, um cônjuge/companheiro não pode ser discriminado em seus direitos em relação aos demais cônjuges/companheiros, notadamente em relação àqueles que têm a faculdade de pactuarem espontaneamente a separação voluntária dos bens.
Ademais, a desequiparação só pode ocorrer para proteger a pessoa mais frágil na relação e não para preservar direito de terceiros estranhos a ela, no caso, os herdeiros.Mesmo porque, essa discriminação em nada protege o idoso, já que ele pode, inclusive, ser prejudicado por ela caso ocônjuge/companheiro mais novo morra primeiro.
Se a restrição ao casamento do idoso tinha, pelo menos teoricamente, a intenção de protegê-lo, a norma que exclui os cônjuges e companheiros maiores de 70 anos de suas recíprocas sucessões nem isso atende. Isso porque a restrição à sucessão só protege os herdeiros, mas o deixaria sem direito à herança cônjuge/companheiro o idoso, na hipótese de falecer depois do mais novo. Isto é, na realidade, apenas o idoso seria prejudicado.
Ou seja, essa desequiparação não protege o idoso, mas sim seus herdeiros, o que não é legítimo nem constitucionalmente permitido.
A lei, nessa parte, além de desumanizar, é contraditória, já que permite a sucessão quando os cônjuges têm a facilidade de optar por qualquer um dos regimes de bens, mas nega a herança quando o regime é obrigatório. Se é admitida a sucessão quando os cônjuges/companheiros podem escolher o regime, muito mais justo o será quando não se dispõe desse arbítrio. E se o casamento ou a união for entre dois maiores de 70? Quem seria, em tese, “protegido”? Evidentemente, nenhuma delas, mas, apenas, seus respectivos sucessores.
Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, em casos análogos, já se posicionou contra outras espécies de discriminações e pacificou a questão com as decisões proferidas nos Processos ARE 1.309.642 (Tema 1.236) e RE 878.694. Como ressaltado na decisão, a legislação atual conferiu mais autonomia ao interditado do que ao idoso.
Verifica-se, pois, a total inconstitucionalidade da tentativa de exclusão dos cônjuges/companheiros, unidos pelo regime da separação obrigatória de bens, da sucessão hereditária recíproca, prevista no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil.
E mesmo que a referida norma não fosse inconstitucional, o que se admite apenas para argumentar e por excesso de cautela, nos termos do previsto no § 1º, do artigo 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, dentre outras hipóteses, a lei posterior revoga a anterior quando for com ela incompatível:
“Art. 2º. Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.§1º.A lei posterior revoga a anteriorquando expressamente o declare,quando seja com ela incompatívelou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”(Grifos do articulistas). (Decreto-Lei 4.657/1942, Artigo 2º, § 1º)
A Lei 10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa), em seus artigos 2º, 3º e 4º, revogou, por incompatibilidade, a discriminação contida no mencionado dispositivo inconstitucional ao estabelecer que a pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, que faz jus à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar, não podendo, evidentemente, ser submetida a quaisquer tipos de discriminação,in verbis:
“Art. 2ºA pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)Art. 3ºÉ obrigaçãoda família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania,à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiare comunitária. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)Art. 4ºNenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo denegligência,discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. (Redação dada pela Lei nº 14.423, de 2022)”(Grifos do articulista).(Lei 10.741/2003, Artigos 2º, 3º e 4º)
Isto é, se a pessoa idosa, com fundamento na Constituição e na Lei 10.741/2003goza de todos os direitos, não há como lhe negar a prerrogativa de herdar e de ter o seu cônjuge/companheiro o mesmo direito.
Mesmo porque, o casamento ou a união estável podem ser celebrados ou estabelecidos por um casal com idade igual ou superior a 70 anos. Porém, de acordo com a indigitada norma em análise (CC, 1.829, I), nenhum deles estaria habilitado a suceder ao outro, o que é constitucional e legalmente inadmissível.
Em consequência, também deve ser reconhecida e declarada a revogação, por incompatibilidade, da tentativa de discriminação contra os cônjuges/companheiros, unidos pelo regime da separação obrigatória de bens, da sucessão hereditária, prevista no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil.
Referida norma também é completamente desarmônica e incongruente com os demais dispositivos contidos no próprio Código Civil, visto que, nos termos do contido no artigo 426, do Código Civil, é expressamente vedado que a herança de pessoa viva seja objeto de contrato.
“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.”
Isto é, se a herança da pessoa viva não pode ser objeto de contrato, é inadmissível que o pacto nupcial tenha efeitos sobre o direito do indivíduo ser herdeiro ou sucessor.
Ou seja, o estabelecido no pacto nupcial ou no contrato de união estável não pode ter repercussão na sucessão, conforme disposto no referido artigo 426, da CC.
Inclusive, o artigo 1.845, do Código Civil, ao estabelecer os herdeiros necessários, não faz nenhuma distinção e também não criou a figura do cônjuge/companheiro de segunda categoria ao disciplinar:
“Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e ocônjuge.”(grifo do articulista)
Também em cotejo com o artigo 1.845, do CC, verifica-se a ocorrência de antinomia entre dispositivos endógenos do próprio Código Civil, devendo, assim, prevalecer os que se encontram despidos do vezo discriminatório contido no inciso I, do artigo 1.829, do CC.
O Superior Tribunal de Justiça também entende que o regime de casamento não tem efeitospost mortem, já que seus reflexos se limitam a disciplinar a questão patrimonial durante a vida do casal, mas não depois do falecimento (STJ – Ac. 3 a T., REsp. 1.472.945/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 20/10/2015,DJe29/10/2015 e STJ – Ac. 3 a T., REsp. 1.472.945/RJ, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 23/10/2014,DJe19/11/2014)
Sendo assim, a natureza jurídica contratual do pacto antenupcial, a teor do artigo 426, c/c o artigo 1.845, do Código Civil, impede que o regime de bens do casal tenha efeitos no direito sucessório, o que também se argui, para todos os efeitos.
A exclusão da sucessão prevista no mencionado no inciso I, do artigo 1.829, do Código Civil, fere, também, o princípio da boa-fé, visto que, “a boa-fé se presume, a má-fé prova-se”.
No entanto, referido dispositivo legal pressupõe que todo o casamento com maiores de 60 e, agora, de 70 anos, seria derivado da má-fé de um dos consortes, o que contraria as normas constitucionais e legais que são em sentido oposto.
Na prática jurídica, isso significa que a boa-fé é o ponto de partida, e qualquer afirmação contrária precisa ser fundamentada e provada por quem a alega. Isto é, referida norma discriminatória não pode ser admitida, já que também afronta o princípio da presunção de existência de boa-fé.
A manutenção de uma regra excludente perpetua uma injustiça. A norma do Código Civil não protege o idoso. Ao contrário, o vulnerabiliza e favorece interesses patrimoniais em detrimento de vínculos afetivos legítimos. Impõe-se, portanto, sua revogação ou interpretação conforme a Constituição, a fim de garantir tratamento jurídico igualitário a todos os vínculos conjugais, especialmente na velhice, fase da vida que demanda especial amparo legal e social.
Fonte: Conjur
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